sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O Poderoso Chefão

"Naquela terça-feira, por algum motivo, acordara cedo. A luz da manhã tornava o seu enorme quarto tão embaraçado quanto uma campina enevoada. A certa distância no pé de sua cama, estava uma coisa de forma familiar, e Woltz moveu-se com dificuldade apoiado nos cotovelos para conseguir uma visão mais clara. Tinha a forma de uma cabeça de cavalo. Ainda tonto, Woltz estendeu a mão para alcançar a lâmpada de cabeceira e acendeu-a.

O choque do que viu tornou-o fisicamente doente. Parecia que um grande martelo o havia atingido no peito, o seu coração começou a bater estranhamente e ele sentiu náuseas. O seu vômito respingou no tapete de gosto grosseiro.

Separada do corpo, a sedosa cabeça preta do grande cavalo Khartoum estava colada num espesso coágulo de sangue. Viam-se os tendões brancos e delgados. Espuma cobria-lhe o focinho, e seus olhos grandes como maçãs que haviam brilhado como ouro se apresentavam manchados, lembrando uma fruta podre, de sangue morto, em consequênia da hemorragia. Woltz foi atacado por um terror puramente animal, e sob o efeito desse terror, gritou pelos craidos, em seguida, telefonou para Hagen, fazendo ameaças descontroladas. Seu delírio insano alarmou o mordomo., que telefonou para o médico particular de Woltz e para o seu substituto eventual no estúdio. Mas Woltz recuperou os sentidos antes de eles chegarem.

Woltz estava profundamente chocado. Que espécie de homem poderia destruir um animal de seiscentos mil dólares? Sem uma palavra de advertência. Sem qualquer possibilidade de negociação para que o ato, à sua ordem, pudesse ser revogado. A crueldade e a falta de consideração por qualquer valor implicavam um homem que considereva a si próprio como a sua própria lei, até como seu próprio Deus..." (pág.67)


"Quem disse que precisamos obedecer às leis que eles fazem para defender o seu próprio interesse e para nos prejudicar? E quem são eles para se intrometer quando cuidamos de nossos interesses? Sonna cosa nostra - disse Don Corleone - esses negócios são exclusivamente nossos. Dirigiremos o nosso mundo para nós mesmos porque é nosso mundo, cosa nostra. E assim temos de permanecer juntos para nos guardarmos contra os intrometidos de fora. Do contrário, eles nos subjugarão como subjugaram todos os milhões de napolitanos e outros italianos deste país." ( pág. 290)


(Mario Puzzo - O Poderoso Chefão)

segunda-feira, 16 de julho de 2007

O Meu Pé de Laranja Lima


"Surgiu um desabafo grande que eu nem esperava.
_ Você é malvado, Menino Jesus. Eu que pensei que você ia nascer Deus essa vez e você faz isso comigo? Por que você não gosta de mim como dos outros meninos? Eu fiquei bonzinho. Não briguei mais, estudei as lições, deixei de falar palavrão. Nem bunda mais eu falava. Por que você faz isso comigo, Menino Jesus? Vão cortar o meu pé de Laranja Lima e nem por isso eu me zanguei. Só chorei um pouquinho... E agora... E agora... Nova enxurrada de lágrimas." (pág. 172)


"Mas poucos dias depois acabou. Estava condenado a viver, viver. Numa manhã, Glória entrou radiante. Eu estava sentado na cama e olhava a vida com uma tristeza de doer.
_ Olhe, Zezé.
Em suas mãos existia uma florzinha branca.
_ A primeira flor de Minguinho. Logo ele vira uma laranjeira adulta e começa a dar laranjas.
Fiquei analisando a flor branquinha entre os dedos. Não choraria mais por qualquer coisa. Muito embora Minguinho estivesse tentando me dizer adeus com aquela flor; ele partia do mundo dos meus sonhos para o mundo da minha realidade e dor." (pág. 183)

(José Mauro de Vasconcelos)

terça-feira, 3 de julho de 2007

Memórias do Cárcere


"À tardinha surgiram novamente os caixões e organizou-se a fila para o jantar. Devolvidos os pratos, percebi um tilintar de chaves; fui ao passadiço, vi no pavimento inferior um guarda trancando as portas; iam-se pouco a pouco dissolvendo os grupos. Os tinidos aproximaram-se, recolhi-me; um instante depois achava-me enclausurado, um livro nas garras, tentando ler à luz escassa da lâmpada. Capitão Mata se acomodava, divagando por assuntos vários. No cubículo à direita haviam-se alojado Macedo e Lauro Lago; à esquerda estavam Benjamim Snaider e Valdemar Bessa, médico, cearense, bicudo. Julguei distinguir a voz de Renato:

_ Alô! Alô! Fala a Rádio Libertadora.

Não era apenas um divertimento arranjado com o fim de matar o tempo e elevar o ânimo dos presos: vieram notícias de jornais, comentários, acerbas críticas ao governo, trechos de livros, o Hino do Brasileiro Pobre, algumas canções bastante patrióticas, sambas.

A Beatriz não vai querer cantar? Disse alguém.

Ir querer, fala estranha, feriu-me o ouvido nordestino. Palmas, aclamações, gritos exigindo o canto de Beatriz Bandeira. Um sussurro doce flutuou longe:


As granadas vêm caindo,

Incendiando meu quartel


Diabo! Havia mulheres ali. Onde se escondiam elas? Finda a queda suave das granadas, morto o agradável incêndio no quartel, vibraram aplausos vários minutos. As vozes se espaçaram, arrefeceu o entusiasmo, afinal a Rádio Libertadora encerrou o seu programa daquele dia."


(Memórias do Cárcere - Graciliano Ramos - pág. 216-217)