terça-feira, 3 de julho de 2007

Memórias do Cárcere


"À tardinha surgiram novamente os caixões e organizou-se a fila para o jantar. Devolvidos os pratos, percebi um tilintar de chaves; fui ao passadiço, vi no pavimento inferior um guarda trancando as portas; iam-se pouco a pouco dissolvendo os grupos. Os tinidos aproximaram-se, recolhi-me; um instante depois achava-me enclausurado, um livro nas garras, tentando ler à luz escassa da lâmpada. Capitão Mata se acomodava, divagando por assuntos vários. No cubículo à direita haviam-se alojado Macedo e Lauro Lago; à esquerda estavam Benjamim Snaider e Valdemar Bessa, médico, cearense, bicudo. Julguei distinguir a voz de Renato:

_ Alô! Alô! Fala a Rádio Libertadora.

Não era apenas um divertimento arranjado com o fim de matar o tempo e elevar o ânimo dos presos: vieram notícias de jornais, comentários, acerbas críticas ao governo, trechos de livros, o Hino do Brasileiro Pobre, algumas canções bastante patrióticas, sambas.

A Beatriz não vai querer cantar? Disse alguém.

Ir querer, fala estranha, feriu-me o ouvido nordestino. Palmas, aclamações, gritos exigindo o canto de Beatriz Bandeira. Um sussurro doce flutuou longe:


As granadas vêm caindo,

Incendiando meu quartel


Diabo! Havia mulheres ali. Onde se escondiam elas? Finda a queda suave das granadas, morto o agradável incêndio no quartel, vibraram aplausos vários minutos. As vozes se espaçaram, arrefeceu o entusiasmo, afinal a Rádio Libertadora encerrou o seu programa daquele dia."


(Memórias do Cárcere - Graciliano Ramos - pág. 216-217)



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